The Runaways celebra a lenda das garotas que mudaram o rock


Onde você estava em 1975? “The Runaways” fornece um flashback ácido para a metade encardida dos anos 70, onde os sonhos de glamour refletiam-se nos olhares vitrificados de uma geração autodestrutiva, que usava guitarras agressivas como expressão e suava vermelho sangue, lápis preto, delineador dourado e branco vazio.


Não é por acaso que chamavam essa era de “glam”. Tudo era muito colorido, do rosto maquiado do ídolo David Bowie às roupas prateadas de Elton John, enquanto as músicas falavam de outros mundos excitantes. O impressionante uso de drogas e o hedonismo pré-Aids do período parece provavelmente muito vibrante na tela. Mesmo quando o filme deixa claro que as protagonistas sofreram com seus vícios, tudo reluz glamouroso.

Puro escapismo. A economia não podia estar pior. As filas dos desempregados só era menor que a dos lares desfeitos. Os adolescentes viviam como se não houvesse futuro. Álcool e drogas tornavam o cotidiano mais fácil. E a confusão se estendia ao sexo, usado quase como afirmação na busca de uma identidade.

No auge da era andrógina, garotas valentes como Suzi Quatro pareciam sexy para ambos os sexos, enquanto os garotos não viam problemas em se maquiar como Marc Bolan – todos refletindo a letra da música “Lola”, dos Kinks. Mais bandas que nunca surgiam e sumiam em segundos, tentando dar significado ao sentimento de indefinição generalizada, fosse com fantasias mirabolantes ou manifestando uma rebeldia nunca antes vista no rock – ali na esquina, nascia o punk rock.


Nesta mesma época, em Nova York, uma banda implodia após levar o glam a extremos, com vestidos e um transformista nos vocais – os New York Dolls. Seu empresário era um conhecido picareta, Malcolm McLaren, que em poucos meses estaria do outro lado do Atlântico juntando os pobretões de dentes cariados e roupas puídas que freqüentavam a sex shop de sua namorada – os Sex Pistols.
Havia – como ainda há – muitos empresários picaretas.

Em Los Angeles, Kim Fowley era um dos mais famosos. Depois de trabalhar com várias garage bands nos anos 60, participar dos discos de estreia de Frank Zappa e Warren Zevon, criar hits para Kiss e Alice Cooper, e produzir a primeira banda new wave The Modern Lovers (em 1973, com integrantes dos futuros Talking Heads e The Cars), Fowley foi sacudido por um momento Eureca. Por que não existia nenhuma banda de rock só com garotas?


Na verdade, existia, ali mesmo na Califórnia, a banda Fanny, e antes dela a precursora, nos anos 60, Goldie & the Gingerbreads. Mas cantavam um pop adocicado, no máximo psicodélico. Fanny foi a banda de apoio do começo da carreira de Barbra Streisand!
Fowley estava atrás de algo diferente, de cinema. Literalmente. Ele queria a banda fictícia The Kelley Affair do filme “De Volta ao Vale das Bonecas” (1970), um trash psicodélico do diretor de softcore Russ Meyer, que explorava rock, sexo e cores berrantes.


 Em 1974, o empresário publicou um anúncio num fanzine de Los Angeles procurando por garotas instrumentistas. Seu plano era formar uma banda de mulheres, escolher seu repertório e produzi-la. Ninguém respondeu ao anúncio.
Nada desse prelúdio está em “The Runaways”, como também várias outras lacunas da história. A diretora Floria Sigismondi, que vem da escola dos videoclipes musicais, usou o pequeno orçamento independente a sua disposição para enfatizar com granulação de documentário o feeling do período, não uma biografia tradicional.


Todos os olhares e lábios exalam atmosfera. As cenas são fotografadas com cuidado fashionista, o ritmo é elétrico e a trama, em sua concisão, um pequeno vislumbre de uma era. Sigismondi filma estilosamente cada cenário, cabelos e roupas como se fossem os mais modernos do mundo, sendo sobretudo – paradoxalmente – fiel ao período.
É quase como se a história não fosse necessária, apenas a música, a moda e a atitude. Uma opção interessante para contar uma trama que não vai além de um parágrafo. Garotas de lares desfeitos começam uma banda de rock, encontram um empresário duvidoso, tornam-se famosas muito rápido, se enchem de drogas, tomam péssimas decisões e vêem tudo ruir em meses. É a história típica do rock. A diferença são os seios pequenos e a vontade de soarem – sem ser – como garotos.


“The Runaways” faz um bom trabalho ao criar sua ambientação sem cair no kitsch. A opção pelo espírito modernista coincide com a intenção da diretora em enfatizar aspectos icônicos de suas heroínas – rebeldes, jovens, pioneiras.
Como o filme conta, The Runaways foi uma banda acidental – ainda que, durante anos, tenha sido considerada pré-fabricada e hoje possua fama de seminal. A andrógina Joan Jett, de jaqueta e atitude de couro, aborda Kim Fowley num bar de rock em Hollywood com a idéia de formar um grupo só de garotas. Diante da menor com cara de delinquente, a luzinha acende sobre a cabeça do empresário, que imediatamente a apresenta à baterista Sandy West, por coincidência flanando ali ao lado.


Elas se conectam e The Runaways surge como mágica. Mas Fowley ainda acha que falta algo: Bridget Bardot – ou o sex appeal de uma Debby Harry um par de anos antes da banda Blondie. Assim, de volta ao bar, a ninfeta loirinha com o penteado de Farrah Fawcett e uma fixação em David Bowie, Cherie Currie, é abordada por seu visual.
O teste de Cherie materializa uma das cenas antológicas da produção. No ato, Fowley a provoca a cantar versos obscenos, em contraste a sua carinha de anjo, enquanto Joan Jett improvisa alguns acordes. É a origem do hit “Cherry Bomb”. Dá para sentir a excitação das garotas ao juntarem três notas numa canção, aprendendo a tocar enquanto seguiam seu sonho, fazendo antes tudo aquilo que os Sex Pistols se tornariam lendários por repetir um ano depois.


A trama é baseada na autobiografia da cantora Cherie Currie. O livro inclui um estupro, várias formas de abusos sexuais e um aborto. O filme não. As cenas mais controversas ficaram de fora, segundo a diretora, devido à idade da atriz Dakota Fanning, que interpreta a vocalista das Runaways. Ironicamente, a mesma idade que Cherie Currie tinha enquanto incendiava o mundo: 15 anos.
Dakota e Kristen Stewart, ambas parceiras na franquia adolescente “Crepúsculo”, vão além da simples atuação, virando doppelgangers de Cherie e Joan Jett. Estudadamente idênticas, do vestuário aos trejeitos, do exibicionismo à timidez desconfortável, elas também cantam algumas das músicas da trilha, mimetizando fielmente as roqueiras originais.


 Se as duas transmitem naturalidade em seus papéis, Michael Shannon está sobrenatural como Kim Fowley. Roubando cada cena em que aparece, o ator, indicado ao Oscar de Coadjuvante por “Foi Apenas um Sonho” (2009), alimenta a raiva das garotas xingando e jogando merda – literalmente – como artifício motivacional. Seu retrato captura a fina linha entre demência e genialidade, entre picaretagem e talento.
O resto da banda pouco aparece. Fica ao fundo, como num show, em que todos os olhos se voltam para quem ocupa os microfones.

Há uma explicação legal para isso. A produção não obteve o direito de imagem de algumas integrantes – uma ex-baixista ameaçou impedir o lançamento se ela fosse citada e o resultado foi a invenção de Robin, fictícia, no baixo. A rainha da guitarra heavy metal Lita Ford também se recusou a cooperar com Joan Jett, que acumula a função de produtora do filme. Mágoas antigas. Assim, ficou com pouco espaço e simpatia na história.


Mas o que sobra é suficiente. É o essencial. A história de amor entre a loira, a morena e o rock. Aos 15, elas se curtem, tocam e transam, e não se afastam nem quando Kim Fowley arranja para Cherie posar em fotos safadas para fotógrafos japoneses, na véspera de sua turnê pelo Japão, causando ciúmes e rupturas na banda. Quem as afasta, malvada, é Lita Ford.
Os excessos da primeira turnê internacional levam o grupo a experimentar seu auge e também sua decadência. As adolescentes que, antes da viagem, enfrentavam as vaias de quem achava que garotas não sabiam tocar pesado, descobrem-se deusas do rock no Japão, único país que as tratou como superstars, um pouco devido á fetichização promovida por Fowley, atento ao apelo das Lolitas na cultura daquele país.


Floria Sigismondi abraça a imagem-fetiche, explorando detalhes dos corpos magros, ainda sem curvas, de suas estrelas adolescentes. Os lábios entreabertos de Kristin Stewart dizem mais, calados, que todas as linhas do roteiro. Seu olhar devora a Lolita Fanning de corpete e cinta liga.
A cena em que as duas “ficam” é o único momento em que a Joan Jett da tela demonstra algo além de ambição. No resto da projeção, a personagem permanece um enigma. Não sabemos nada sobre sua família, vida ou sexualidade – ao contrário de Cherie, que tem uma ligação íntima com a mãe (vivida por Tatum O’Neal, que era um pouco mais nova que Joan quando ganhou o Oscar de Atriz Coadjuvante em 1971) e a irmã Marie (vivida por Riley Keough, neta de Elvis Presley!). A verdadeira Joan nunca abordou sua sexualidade de forma pública. O máximo que disse está nos fotogramas do filme.


Sob os holofotes mais quentes, Cherie, claro, derrete. Sexo, drogas e rock’n’roll.
A diretora evita o melodrama, cortando a seco a espiral decadente da vocalista. Também tangencia alguns tumultos, as brigas de arrancar cabelo entre Joan e Lita Ford, e pinta Fowley como uma figura exótica, não um canalha. As alegações de suposto abuso sexual do empresário nem sequer são aludidas na trama – mas podem ser conferidas no documentário “Edgeplay” (2005), em que as Runaways lhe acusam das piores coisas. Como algumas das garotas tinham apenas 13 anos, a barra foi muito mais pesada que a bad trip da projeção. Um aborto é omitido da conclusão.

O filme também tende a exagerar o impacto da banda, que só durou dois anos e lançou três álbuns de estúdio – dois dos quais sem Cherie. The Runaways chamou atenção, mas não gerou o tipo de terrorismo midiático dos Sex Pistols, nem ganhou o respeito da crítica de sua época, que a rotulava como apelativa e pré-fabricada, muito menos teve sucesso comercial, pois era pesada demais para o rádio. Seu reconhecimento veio bem depois, quando o punk também entrou para a história do rock, nos anos 80, após Joan Jett estourar em sua carreira solo.


 “The Runaways” não é a biografia das Runaways. É a lenda. Não deixa os fatos atrapalharem a boa história das adolescentes que ousaram tocar rock, numa época em que garotas com guitarras pareciam vir de Marte como a banda de Ziggy Stardust. Elas foram, de fato, lendárias.

fonte:pipocamoderna

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